“O sonho encheu a noite. Extravasou pro meu dia. Encheu minha vida e é dele que eu vou viver. Porque sonho não morre” (Adélia Prado)

12 de set. de 2013

A Enjeitada




Sim, eu exagero quando conto uma história. Eu aumento mas não invento. Afinal, que graça tem em narrar um fato sem nosso tempero pessoal? Porém, pode ser que a vida nos surpreenda com acontecimentos que já são histórias prontas, não cabe nenhum acréscimo: são naturalmente exageradas e extravagantes.

Tudo começou quando estávamos construindo essa casa e meu marido apareceu com uma bacia sanitária enorme, quadradona. Eu olhei para aquilo e pensei que qualquer pessoa que sentasse alí seria engolida facilmente. E pra piorar, a dita-cuja era verde.  Não um verde qualquer, era um verde que ficava entre o horroroso e o medonho.  Claro que eu sabia que aquilo era sobra de obra de algum cliente de péssimo gosto, mas aceitei a coisa quando ele me disse que era para a área de serviço. Além disso, já tínhamos esgotado nossa cota do dia de brigas por causa da obra. Voilà. Um motivo a mais para eu passar longe da área de serviço.

Não nego que aquela 'coisa' me incomodou por todos esses anos, agora, entretanto, tinha um bom motivo para me livrar dela: o banheiro necessitava de reparos.  

Eu disse 'me livrar'?... Não foi bem isso o que aconteceu.

A verdona indecente foi parar na garagem depois de substituída por uma branquinha linda, design moderno e tudo mais. Nos dias que se seguiram liguei para operação bota-fora do condomínio para vir retirá-la, mas fui informada que não retiravam apenas uma peça. Então, apelei para o tio Google e encontrei uma loja de materiais usados de construção. Liguei e ofereci-a gratuitamente. Um rapazinho com uma voz irritante me disse “não aceitamos coisa das intimidades dos outros, não senhora”. Tentamos, eu e meu marido, quebrá-la em pedacinhos e esconder os cacos dentro do lixo para o lixeiro levar. Quem disse que conseguimos? Parecia de aço a maldita!

Os dias foram passando e o caso parecia sem solução. Tínhamos que arrumar um lugar para a coisa verde, mas onde? Eu não aguentava mais vê-la na minha garagem como se fosse um troféu pela nossa incompetência.

Foi num surto de brilhantismo que tive uma grande ideia. Combinei com meu marido que sairíamos naquela madrugada pelo condomínio à procura de uma obra. Obras têm caçambas e era dentro de uma que iríamos desovar a coisa.

Saímos de casa às 2h da madrugada com a bacia no porta-malas. Rodamos por várias ruas até que avistarmos uma obra, e viva! Tinha uma caçamba!... Com uma montanha de entulho muito além do que ela suportava!

Meu marido desligou o motor do carro, desceu a rua em ponto-morto e estacionou ao lado da caçamba. Abriu o porta-malas silenciosamente, pegou a enjeitada, e, num sacrifício extra-humano se esticou feito um homem elástico, mas conseguiu colocá-la em pé no topo da 'montanha'. Estava formada a cena mais esdrúxula que eu já tinha visto em toda minha vida! Quando ele saiu com o carro, dei uma olhadinha pra traz e juro que imaginei uma braçada de rosas vermelhas dentro dela. Antes o excêntrico do que o patético.

Quase chegando em casa, eu disse: “temos que voltar e tirar aquilo de lá”.

Não seria educado da minha parte escrever aqui o que ele respondeu, mas insisti que tínhamos que voltar: “não podemos deixar lá, vi cortinas na janela... talvez seja só uma reforma, deve ter gente morando... Já imaginou amanhã cedo quando os donos da casa acordarem e der de cara com...”

Não terminei a frase, pois bati com a cabeça na manobra radical que ele fez ao retornar.

Ele guiava de volta calado, mas eu não parava de falar: “Tive outra ideia... Ela é verde, não é? Verde é o que mais tem aqui... Vamos desová-la na mata! Vai ficar bem camuflada, como não pensei nisso antes?”

Chegamos tranquilos à reserva de mata que escolhemos para cometer o delito. Visto não haver casas por perto, podíamos fazer barulho à vontade. Tratava-se de um terreno em declive, ótimo para lançar a coisa lá de cima que rolaria o mais longe possível.  Você só precisa de boa mira para acertar um corredor entre as árvores, evidente que não disse isso a ele.

Meu marido mais uma vez tirou a bacia do porta-malas, carregou-a até uma boa distância e começou a fazer o balanço para pegar impulso ao lançá-la. Foi no terceiro balanço que eu gritei Espera!!!

Ele soltou-a no chão e por centímetros não atinge o seu pé. A situação carecia de uma argumentação rápida da minha parte: “Não podemos fazer isso... E se ela atropelar um macaquinho?”

“Macacos dormem em árvores” – disse ele, impaciente. “E esquilos, também” – acrescentou adivinhando meus pensamentos.

“Mas, tem os nhambuzinhos, tadinhos... Tão bonitinhos...”

“Nhambus dormem nos ninhos entre as pedras” .

“Tem os lagartos! Eles dormem entre as folhas secas. E se for uma fêmea com filhotes?... Lagartos amamentam?” 

CHEGA!!! – gritou ele, furioso.

Ele socou a bacia dentro do porta-malas com tanta força que pensei que fosse vazar. De volta pra casa eu ainda o convenci que devíamos abandoná-la num terreno baldio mesmo. Argumentei que quando o proprietário fosse desmatar para construir, daria um fim digno a ela.  

Encontramos um terreno perfeito, no fim de uma rua sem saída. O ritual da madrugada se repete: sair do carro, abrir o porta-malas, retirar a coisa... Dessa vez me antecipei a ajudar, precisava limpar a minha barra.

Uma luz ascendeu na casa em frente. Como numa coreografia ensaiada, rapidamente nos agachamos atrás do carro. Alguns minutos depois estávamos sentados no chão.  A luz continuava acesa e nós lá: eu, ele e a bacia no meio.

Não há nada pior do que brigar com o marido na base do cochicho“vai pro inferno, amor” “ah, vai você, paixão”.

Ele me acusou de ser a causadora daquela confusão: disse que não precisávamos trocar a bacia. Confessei que desde o inicio odiei aquela aberração verde-limo. “É verde-musgo!!!” – grunhiu ele entre os dentes.

Não entendo que qualquer coisinha à toa seja motivo para o casal partir para uma DR. (discutir a relação) 

A DR já tinha atravessado os anos e chegado ao inicio de namoro quando, de repente, olhei pra ele e o vi abraçado à bacia numa intimidade absurda! Não aguentei e explodi numa gargalhada!

Tratamos de sair correndo dali antes que alguém ligasse para a segurança do condomínio vir averiguar o 'carro suspeito' estacionado na rua em plena madrugada.

Quando chegamos em casa, o céu se azulava num novo amanhecer. Os passarinhos soltavam os primeiros piados em acordes. Talvez estivessem rindo da nossa cara.

Na garagem, meu marido transferiu a bacia para o meu carro e disse apenas 3 palavras: “vire-se com ela!”.

Isso aconteceu há uns 2 meses, e desde então, ela passeia comigo onde quer que eu vá. Se nada mais der certo, vou plantar Amores-perfeitos coloridos nela e colocá-la bem no meio do meu jardim. Depois, vou sair por aí espalhando que sou discípula de Marcel Duchamp...